Sociedade de desempenho e saúde mental.
O termo “sociedade disciplinar”, utilizado principalmente na escola foucaultiana (já vou dizendo que é Foucault, para ninguém falar que eu estou enfiando marxismo goela abaixo de ninguém) de pensamento, refere-se a um paradigma surgido após a Revolução Industrial, em que ocorreu a massificação do controle social. A vida passou a ser um trânsito entre os chamados “espaços de confinamento”, como casa, fábrica, hospital, escola, prisão, entre outros, havendo disciplina e controle rígidos dentro desses espaços. Havia controle de horário, da aparência e das ações dos “confinados”, para facilitar o seu controle massificado pelos proprietários desses lugares. Havia punição severa, física e psicológica, para qualquer um que destoasse do conjunto, pois isso poderia inspirar outros a fazerem o mesmo.
Mas é claro, um dia tanta pressão iria fazer a sociedade explodir em protestos. Com o tempo, as punições da sociedade disciplinar passaram a não ser suficientes para conter os movimentos sociais; consequentemente, muitas modernizações foram feitas. As escolas passaram a ter disciplina menos rígida e uma forma de aprendizado mais flexível, sem perder efetividade; as mulheres conseguiram libertar-se (pelo menos formalmente) do seu papel exclusivo de dona de casa; leis trabalhistas humanizaram as condições de trabalho; o internamento compulsório de doentes mentais foi sendo cada vez mais combatido. Segundo o filósofo sul coreano Byung Chul Han, há algumas décadas atrás vem se formando uma nova forma de controle social, além da disciplinar, por causa do enfraquecimento desta: a sociedade de desempenho. E isso pode estar diretamente ligado com a epidemia de doenças mentais que vivemos atualmente, assunto largamente tratado nas campanhas do Setembro Amarelo, mês de prevenção ao suicídio.
Em sua obra “Sociedade do Cansaço”, Han coloca que a principal diferença entre a sociedade disciplinar e a de desempenho é que a primeira é marcada pelo controle negativo, pelo medo do diferente, enquanto a última oprime pelo excesso de positividade, pelo medo do seu igual, pela necessidade frenética que se tem de ser especial, único, de ter um desempenho não só melhor do que o do outro, mas com sua marca pessoal. Claro, é muito bom que uma pessoa cultive pensamentos positivos, pense que sempre pode melhorar… o grande problema é quando isso se torna uma obrigação, uma necessidade de sobrevivência. Na sociedade do desempenho, ou você é útil, positivo, tentando sempre atingir os padrões inatingíveis de performance e desempenho que o mundo exige, ou você é considerado “morto” pelo meio social. A depressão, para o autor, seria algo como a constatação (inevitável) desse fracasso em ter um bom desempenho, o que, em última instância, pode culminar no suicídio, na morte literal. O que seria mais perverso nisso tudo é que, no paradigma disciplinar, o controle era exercido por um outro; no paradigma atual, de excesso de positividade, é o próprio indivíduo que exerce esse controle sobre si mesmo, sentindo-se responsável por absolutamente tudo o que ocorre consigo. Com indivíduos mais isolados, atomizados por conta do medo do “igual”, é a própria pessoa que se pune se sente que não está tendo um desempenho adequado. Antes, era o Outro que apertava o gatilho; agora, é o Eu, o igual.
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Outra característica marcante do paradigma atual é a multitarefa. O operário padrão da sociedade disciplinar era aquele do filme “Tempos Modernos”, focado em fazer apenas uma coisa, sob pena de ser punido se desviar a atenção dali. Na multitarefa, o indivíduo tem que ser capaz de fazer mil coisas ao mesmo tempo, e ser bom em todas elas. Isso desumaniza a pessoa, pois segundo o filósofo, o que nos define como humanos é a capacidade de contemplação, de foco e aprofundamento. A atenção constante em múltiplos focos é uma função de sobrevivência na vida selvagem. Sendo assim, o indivíduo multiatarefado sente-se cada vez menos humano, desejando cada vez mais a morte, a única “solução” para saciar a obrigação frenética e incessante de aumento de desempenho. Isso não só no trabalho; nossas formas de lazer, principalmente digital, exigem a capacidade de multitarefa.
E se por acaso a pessoa consegue se libertar desses jogos mentais perversos, os controles da sociedade disciplinar são acionados; eles foram enfraquecidos, mas ainda estão a postos para o caso da sociedade do desempenho falhar em sua dominação.
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4 pensamentos em “Sociedade de desempenho, saúde mental e positividade tóxica”
Muito boa essa análise. Infelizmente fui vitima do excesso de funções, não apenas porque precisava fazer o que os outros não faziam como era cobrado por não ser “rapido o bastante” sendo que eu me matava para fazer tudo a tempo. Por conta desse ritmo frenético eu ativei meu gatilho da ansiedade que me levou a depressão profunda e a inevitável sensação de vazio e morte. É triste,mas é verdade…